Nem senzala, nem silêncio: chegou a vez de ouvir as Helenices, Marielles, Malês!
- IJN

- 28 de ago.
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Atualizado: 17 de set.

Estrear uma coluna do Instituto Juristas Negras na Revista Raça, em pleno mês de março e num contexto político mundial como o que estamos vivenciando, nos deixou com alguns desafios nas mãos. Ou seria no peito? Diante de nós, a revista de conteúdo negro mais antiga da América Latina, bem como as altas taxas de feminicídio e encarceramento em massa de mulheres negras; um cenário global de ódio às minorias; um panorama político brasileiro de constantes ameaças e violações dos direitos humanos do povo negro.
No mesmo sentido, os cargos de poder com tomadas de decisões relevantes ainda são ocupados, majoritariamente, por homens brancos. Há uma engrenagem histórica e invisível que os leva, sob o pretexto falacioso da meritocracia, até as cadeiras das câmaras municipais, às bancadas federais e aos tribunais. A naturalização da ausência de mulheres negras nesses espaços é um dos efeitos mais perversos do racismo patriarcal. Nós ainda somos minoria assinando os cheques e as sentenças. E quando a realidade confronta quem sempre esteve em posição de privilégio, o resultado pode chegar a ser violento e criminoso, tal qual a postura de José Francisco Abud, advogado carioca, contra a juíza Helenice Rangel, da 3ª Vara Cível de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro. O homem branco, firme na crença racista de ser sujeito universal, não sustentou o peso que representa uma juíza negra contrariando tantas estatísticas brasileiras. Eles nos querem segurando vassouras e não suportam quando o que temos nas mãos são justas canetas. Queiram ou não queiram os que se beneficiam com o pacto narcísico da branquitude, chegou a vez de ouvir as Helenices, Marielles, Malês!
Na linha do tempo da história sociopolítica brasileira, encontramos três personagens indispensáveis ao texto de hoje: Carolina Maria de Jesus, Abdias Nascimento e Marielle Franco. Se 14 de março foi a data de chegada neste mundo para os dois primeiros, para Marielle – e para nós que ficamos -, significou uma abrupta despedida.
Pela escrevivência de Carolina Maria de Jesus e trazendo a poesia contundente de Conceição Evaristo, temos a certeza de que as lágrimas insubmissas que ainda escorrem dos nossos “olhos d’água” jamais se contentaram em molhar o chão das senzalas e dos “quartos de despejo”. Os caminhos abertos pelo legado de luta por igualdade racial de Abdias Nascimento nos convocam a avançar coletivamente, apesar dos tão severos obstáculos. Mesmo diante da dor do luto por Marielle Franco e Anderson, somos prova de que esse “sangue retinto pisado” é adubo para que floresça em solo fértil, um presente e futuro onde gênero, raça e classe não definem expectativa de vida, renda, escolaridade e tantos outros marcadores que mantêm as mulheres negras na base da pirâmide social.
Sim, porque se somos, como nos disse Nego Bispo, “começo, meio e começo”, é preciso ressignificar essa data tornando-a um chamado para luta por justiça racial e fortalecimento da democracia, em reforço ao 21 de março: Dia Internacional Contra a Discriminação Racial.
No entanto, dispensamos o fardo de guerreiras sobre as nossas costas. Bem como os elogios por isso vindos de quem assiste a tudo inerte do seu lugar de privilégio. É indispensável chamar os homens ao compromisso de abrir caminhos e portas. Não basta não ser ameaça, não ser algoz. É necessário fazer valer o que disse Abdias Nascimento: ser cavalo das mulheres. Especialmente, das mulheres negras. Sim, nós ainda precisamos de “cavalos”, que podem ser, independente de gênero e raça, pessoas antirracistas e antissexistas, dispostas a abrirem caminhos para que efetivamente estejamos, nós mesmas, presentes em todos os lugares que são nossos por direito.Enquanto integrantes do Instituto Juristas Negras, podemos garantir que a “memória celular dos açoites” é combustível diário para a busca pela reparação, justiça racial e efetiva democracia. Se há “resquícios de senzala” na atuação profissional ou existência de pessoas afro-brasileiras, eles estão juntos à certeza de que para lá não voltaremos. O surto da casa grande é pouco para nos deter. E se depender de nós, seguiremos acordando quem dormir sonos injustos.



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